matéria original: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/07/18/mortes-abuso-alcool-pandemia.htm
Dados dos SIM (Sistemas de Informações sobre Mortalidade), sistema oficial do Ministério da Saúde para registrar óbitos no Brasil, mostram que, de 2019 para 2020, houve aumento de 18,4% nos registros de mortes com causa básica final relacionada a "transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool".
Em 2020, foram 7.612 mortes, principalmente a partir de abril, logo depois dos primeiros casos e mortes por covid-19 no país. Em todo o ano de 2019, foram 6.428.
Especialistas analisaram dados entre 2010 e 2020 e indicam que o aumento está muito acima da média da última década —na maior parte deste período, houve queda neste tipo de morte. Entre 2018 e 2019, a elevação havia sido de apenas 0,2%.
O máximo de aumento identificado na última década até agora tinha sido em 2011, com relação ao ano de 2010, de 3,9%. E entre 2012 e 2016, a tendência foi majoritariamente de queda." Luciana Vasconcelos Sardinha, médica epidemiologista e assessora técnica da Vital Strategies.
Zila M. Sanchez, professora do Departamento de Medicina Preventiva da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), classifica os dados do Ministério da Saúde como "alarmantes". "Porque a tendência desses casos que vinha sendo registrada nos últimos seis anos era de queda, e em 2020, com o isolamento por causa da pandemia, começou a crescer", afirma.
Sanchez nota que o aumento de ingestão pode estar concentrado entre aqueles que já faziam alto consumo de bebidas alcoólicas. "São aqueles denominados como abusadores, com ingestão de mais de cinco doses por dia."
A Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) confirma que existem evidências de que as pessoas com maior probabilidade de aumentar o consumo de álcool já bebiam excessivamente antes da pandemia. Mais de 300 mil mortes por ano são provocadas por doenças relacionadas à ingestão de bebidas alcoólicas, de acordo com a Opas. A OMS (Organização Mundial da Saúde) afirma que não existe limite seguro para o consumo do álcool, e os danos à saúde aumentam com a quantidade consumida.
Isolamento alterou a forma de consumo
As epidemiologistas Luciana e Zila chamam a atenção para o maior consumo de álcool como estratégia das pessoas no enfrentamento dos efeitos do isolamento, como o convívio maior com a família nos domicílios, as mudanças no trabalho remoto ou mesmo falta de trabalho. Toda essa situação vivida em 2020, principalmente após março, alterou a forma de consumir bebidas alcoólicas, segundo as especialistas.
Esta observação também é comprovada por metade dos entrevistados em pesquisa da Escola de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins e da Universidade de Maryland, dos Estados Unidos, que disseram que o isolamento domiciliar é a principal causa do aumento do consumo de álcool durante a pandemia. O trabalho foi desenvolvido em dezembro de 2020 com entrevistas online. Em fevereiro deste ano, a Associação Americana de Psicologia divulgou pesquisa que mostra que 25% dos adultos passaram a beber mais para lidar com estresse gerado durante a pandemia e o isolamento social.
O advogado Rafael Lebre, de São Paulo, 35, percebeu que aumentou o consumo de bebida alcoólica nos três primeiros meses de quarentena. A bebida era acompanhante diária das reuniões virtuais com amigos e na diversão online. Mas, quando se sentiu incomodado, parou com os drinks constantes.
"Na era das lives, quando havia shows sempre, quando me reunia todo dia com amigos pelo Zoom, tinha bebida. Sempre bebi muito pouco, mas com o susto da situação, a falta de previsão e 'festa' diariamente, acabei matando uma garrafa de whiskey, cachaça ou algo que o valha por semana. As lives foram esfriando, as reuniões também, o consumo caiu", conta.
Lebre avalia que o aumento da quantidade diária de bebida foi provocado pelo "susto" com a doença e também para poder relaxar. O aumento de consumo foi natural, para normalizar uma situação bem atípica e dormir melhor. Percebi a situação quando foi acabando o whisky aqui de casa. Eram muitas garrafas. Me policiei para parar e, sinceramente, não me fazia falta, apesar de às vezes a vontade de consumir álcool ainda venha." (Rafael Lebre, advogado)
Impacto por região no Brasil
O estudo sobre o aumento do consumo de álcool no Brasil na última década, com dados do Ministério da Saúde, aponta que a região Nordeste teve maior variação nas taxas de mortalidade por álcool em 2020 —31%. Na sequência, vem a região Sudeste, com aumento de 18,2%. Para o Brasil, a variação total foi de 17,6%. Levantamento online coordenado por Zila Sanchez e Maristela Monteiro, consultora-sênior sobre álcool da Opas, mostra que, entre 2019 e 2020:
- A proporção de pessoas que consumiam álcool em eventos online cresceu de 6,3% para 10,4%.
- O percentual de pessoas que começavam a beber antes das 17h saltou de 11,2% para 11,9%.
O estudo ouviu 12.328 adultos de 33 países e dois territórios da América Latina e Caribe. E indicou redução no índice de pessoas que ingeriam álcool (que eram 77,5% em 2019 e foram 65% no primeiro semestre de 2020), mas uma maior concentração de consumo entre aqueles que já bebiam em quantidades mais elevadas. Há uma redução no número de pessoas que estão bebendo. Porém, se nota que entre aqueles que já bebem houve aumento do consumo durante esta pandemia." (Zila M. Sanchez, professora do Departamento de Medicina Preventiva da Unifesp)
As pesquisadoras concluem que "diante das associações observadas, recomenda-se rastrear problemas relacionados ao uso de álcool e de saúde mental e oferecer intervenções breves".
Anos potenciais de vida perdidos
Além do impacto individual de cada vida perdida, o aumento de mortes detectado no estudo dos dados do Ministério da Saúde representa prejuízos sociais para o país. Foram estimados mais de 211 mil anos de vida perdidos no ano passado, como consequência do aumento do número de mortes por abuso de álcool no Brasil —alta de 18,9% em 2020, na comparação com 2019. Foi o maior valor observado desde 2010. O impacto dessa mortalidade atingiu principalmente pessoas nas faixas ente 25 e 49 anos, consideradas economicamente ativas.
Segundo a OMS, o álcool contribui para a morte de uma pessoa a cada dez segundos. O abuso do álcool é um dos principais fatores de risco para doenças não transmissíveis, incluindo câncer, doenças cardiovasculares e hepáticas. Além disso, pode piorar o curso de doenças infecciosas, incluindo covid-19.
O alto consumo também pode exacerbar problemas de saúde mental e contribuir para o aumento da violência em forma de homicídios, suicídios e violência doméstica. Além de contribuir para a ocorrência de acidentes com veículos. Em 2016, em todo mundo, o álcool causou aproximadamente 370 mil mortes de trânsito.
"Os incentivos à indústria do álcool são frequentemente justificados como benefícios econômicos para os países. Na realidade, o álcool não contribui para o bem-estar das populações que recebem esse auxílio ao desenvolvimento, mas custa a essas sociedades a longo prazo em termos de custos de saúde e perda de produtividade", afirma Renato Teixeira, consultor da Vital Strategies, organização que atua com governos e outras entidades no planejamento de programas de saúde pública.
A OMS também aponta que, durante a pandemia, as bebidas alcoólicas tiveram sua disponibilidade aumentada em muitos países devido ao acesso fácil, às compras online e a facilidade da entrega em domicílio. Além de haver promoções e incentivo de consumo por publicidade através de mídias sociais. "É necessário haver políticas públicas para enfrentar os problemas de saúde mental que estão se agravando na pandemia. As mortes por abuso de álcool são só a ponta do iceberg", ressalta a médica epidemiologista Fátima Marinho.
Para ela, "os governos têm a responsabilidade de proteger seus cidadãos criando ambientes saudáveis que reduzam o fácil acesso a mercadorias não saudáveis, como o álcool, e que permitem que as pessoas vivam vidas longas e saudáveis". "Muitas vezes há um conflito direto de interesse entre os supostos objetivos econômicos e de saúde pública", conclui.
A professora da Unifesp Zila Sanchez afirma que a adoção de medidas de restrição, como isolamento, traz benefícios para a saúde pública, pois reduz a transmissão do coronavírus. Entretanto, efeitos negativos associados à quarentena poderão ter consequências para a saúde, no médio e longo prazo, como o aumento de consumo de bebidas alcoólicas. "Portanto, espera-se que as ações de saúde pública, também, tenham capacidade de minimizar os efeitos adversos da restrição social prolongada."
O que diz o Ministério da Saúde
Através de nota, sem responder diretamente aos questionamentos feitos pela reportagem, o Ministério da Saúde alega que um único indicador não pode ser considerado causa de um problema.
"O tema (aumento das mortes por consumo elevado de álcool) é uma preocupação constante, de ação permanente dentro da pasta. A pasta realiza o terceiro Levantamento Nacional de Álcool e Drogas, fundamental para que se possa conduzir o problema com cientificidade. Cabe ressaltar que um único indicador não pode ser considerado como causa. A mortalidade, por exemplo, não é um indicador central, pois pode ocorrer após anos de uma causa, como o aumento de consumo. Por isso, a necessidade de considerar outros dados."
A assessoria informa que, para atender a população que necessita de tratamento, "o SUS oferta os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD), que levam atendimento a todas faixas etárias. Os CAPS são especializados em transtornos pelo uso de álcool e outras drogas, onde atuam equipes multiprofissionais no atendimento em situações de crise ou nos processos de reabilitação psicossocial".
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